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Homenagem a Stella Leonardos
98 anos
01/08/1923

Depoimentos
 
Acad. Gilberto Mendonça Teles

STELLA LEONARDOS E SEU CANCIONEIRO LATINO

Em 1973, recém-chegado ao Rio de Janeiro, recebi um pedido de STELLA LEONARDOS para prefaciar o seu livro Amanhecência, publicado pela Aguilar no ano seguinte. Eu devia a Stella Leonardos, como a Valdemar Cavalcanti, as primeiras resenhas sobre livros meus em jornais do Rio de Janeiro. De maneira que foi com satisfação e me sentindo bastante honrado que me lancei à leitura dos originais de Amanhecência, cujo título me inquietava por senti-lo numa zona de influência de Guimarães Rosa, escritor então em moda, que eu lia com certa dificuldade e que hoje, em releituras sucessivas, me faz cada vez mais acreditar que a grande criação literária está mesmo é na linguagem.

É o que fez também Stella Leonardo com o seu livro Amanhecência, estruturado a partir de um projeto de pesquisa lingüístico-literária sem precedência na poesia de língua portuguesa. Equilibrado sobre duas pilastras — um “Códice Ancestral” e um “Reamanhecer” —, seu livro se organizou dentro de uma dupla consciência, lusíada e brasileira: de um “amanhecer” do lirismo português e de um “reamanhecer” das formas líricas brasileiras. Para mim era

um livro de duas linhagens poéticas; nele se inscreve a nobiliarquia de dois estilos que se deixam recriar numa linguagem nova, gravada ao mesmo tempo num “códice” e num canto de “Vocabulário mais solto”. O conjunto é realmente um “lírico manuscrito” que se “inscreve” na literatura brasileira e a “transcende” como um produto dela, como uma onda de luz por ela irradiada.

Na conclusão desse ensaio, sugerimos (com trocadilho ou não) que se levantasse uma Estela em louvor de Stella Leonardos, uma vez que Amanhecência documentava à farta a preocupação da sua Autora “em construir um livro onde aparecessem as artes poéticas e retóricas, as formas, as técnicas e as linguagens da nossa história literária. Um livro que saísse de dentro dos outros livros e que os continuasse em forma de traços epigráficos, um monumento cheio de inscrições, como uma daquelas estelas com que os antigos comemoravam algum fato importante ou algum sinal votivo. A colagem ou a bi-colagem (e talvez a bricolage) das epígrafes e dos poemas desse livro forma assim um documento comemorativo da presença de Stella Leonardos”. E concluímos, corajosamente:

É mesmo um código do “códice”, uma Estela de Stella, mulher a quem a literatura brasileira deve inestimáveis benefícios, como divulgadora dos novos poetas, como poetisa em permanente ascensão e que já produziu livros como [são inúmeros], livros que têm feito mais pela moderna filologia românica no Brasil do que muitos professores e membros de academias.

Apesar de meu prefácio ter sido pioneiro no estudo da epígrafe no Brasil, não me dei conta, na época, da bela utilização da epígrafe por Guimarães Rosa nos dois volumes de Corpo de baile (1956), sobretudo na novela “Manuelzão e Miguilim” que, a partir de 1972, ganhou a sua autonomia num dos volumes em que se desdobrou a edição original. Das quatro epígrafes tomadas a Plotino, a primeira foi para ilustrar o pensamento entre o grande e o pequeno. Diz o filósofo alexandrino que “Num círculo, o centro é naturalmente imóvel”, mas, “se a circunferência também o fosse, não seria ela senão um centro imenso”. É por aí que o leitor se dá conta do jogo filosófico que, pela antítese dos nomes — Manuelzão e Miguilim —, estrutura as duas belas “estórias” do autor de Grande sertão: vereda, romance que encontra o seu paralelo antitético nas quarenta pequenas estórias de Tutaméia, onde o pequeno não passa da visão miúda do grande sertão, assim como Miguilim quando experimentava o uso dos óculos.

Ora, isto vem a calhar como imagem para ilustrar o projeto literário de Stella Leonardos: à medida que o autor o conhece e ajusta os seus “óculos”, compreende a grandeza de um trabalho sem paralelo na literatura brasileira. A velha tese de Viana Moog, sobre as “ilhas culturais”, ainda é uma realidade no Brasil, mesmo que venha sendo descaracterizada pela televisão, pelas novelas, que impõem uma coiné artificial e valores falsos na vida comum do Rio de Janeiro e São Paulo.

O projeto de Stella Leonardos veio de um ponto temático — a língua portuguesa em Portugal e no Brasil. Depois, foi-se alastrando pelo Brasil, procurando romancear e transformar em verso o histórico, o lendário e o mítico de cada região. Assim surgiram livros com o título de Rio cancioneiro, Romanceiro do Estácio e os de Anita Garibaldi, de Bequimão, de São Luís, do Aleijadinho, da Abolição, de Alcântara, de Delfina, do Contestado, do Feitio de Goiás, Capixaba e romançário. Mas o espírito criador de Stella se ampliou no sentido da história da língua, como em Amanhecência, sobre a língua literária em Portugal e no Brasil. E daí o seu projeto adquiriu projeções neolatinas no Cancioneiro catalão e no romeno até chegar à síntese deste Cancioneiro latino, na mais original e ambiciosa pesquisa poética já tentada por um escritor brasileiro.

Neste livro, a poetisa se vale da matéria literária de regiões neolatinas, começando com o português e indo para o espanhol, o galego, o catalão, o francês, o provençal, o italiano, o sardo, o rético e o romeno, não deixando de pagar tributo à contribuição da cultura moçárabe no sul da Espanha. Faz às vezes concessões filologicamente discutíveis, como é o caso do mirandês, enclave de origem leonesa no norte de Portugal.

Se o seu critério de classificação das línguas novilatinas neste livro é uma mistura do lingüístico, do popular e do literário; se não há menção a outra possível língua derivada do latim, como o dalmático, o que se conta no livro de Stella Leonardo é mesmo a ousadia do seu projeto na literatura brasileira, a sua técnica de intertextualização da tradição trovadoresca, o diálogo do português brasileiro, e moderno, com um passado literário que ainda canta pelos vários rincões de uma Europa que sabe valorizar o seu passado cultural.

O que disse, no prefácio de 1973, deve ser repetido agora, e com muito mais ênfase: livros como este de Stella Leonardo atinge o ápice de uma carreira das mais brilhantes entre nós e faz mais pela pesquisa da moderna filologia românica no Brasil do que muitos estudos lingüísticos, do que muitos professores e membros das academias, de literatura e de filologia.

Rio de Janeiro, 2 de fevereiro de 2006.

 
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