A sinfonia da bela poesia de Marcus Vinicius Quiroga em quatro movimentos
Poesias escolhidas pela Acad. Teresa Cristina M.de Oliveira
PASSAPORTE
A maioria dos países me pede o passaporte
quer minha identidade, a foto,
a assinatura,
como fiscal ou polícia de qualquer lugar
poucos têm acordo com meu país
e dispensam a formalidade
Visam meu passaporte em inúmeras línguas
antes da autorização de entrada
e os carimbos vão formando
meu histórico,
como se eu fosse mudando de tamanho
a cada país visitado
Sou do tamanho do que vi
ou do que supostamente conheço
Não caibo mais em meu quarto de hotel
nem no meu vocabulário
Preciso de palavras em quantidade
para pensar o particípio das coisas:
o visto, o vivido, o sentido
Anotam nome, número, nacionalidade
e procedência,
entretanto não me detenho nestes substantivos
Passaporte para mim,
contrariando a gramática,
é verbo
e sabe malabarismos de salto
e tem desejos de voo
Percebo um dia que só não há exigência
de passaporte,
para a viagem a mim mesmo:
território com névoa,
com o tempo nem sempre propício ao pouso,
e com aterrisagem obrigatória
ARQUEOLOGIA
O que em nós é submerso
e se movimenta e não se descongela
com a erosão do tempo; exige o rigor
da calma. Mistério é nome inadequado,
não diz respeito ao que vai preso
na garganta.
O que em nós é vazante
e se extravia não forma ao todo
o nosso rosto; são feições vagas,
aparências nas águas escuras
de um poço.
O que em nós é obstinado
nos leva ao próprio resgate;
em parte, nos afastamos
da terra e da história; em parte,
a busca nos traz ao cais
das inúmeras viagens. Às vezes
partir é a única maneira
de voltarmos para nós mesmos.
VERBOS
O que de mim me desiguala,
O que comigo não se parece,
posto que de mim só retrata
o ser que em mim não permanece
minha face me desassemelha
meu corpo todo me desmembra
e o espelho que me espelha
traz imagem que não me lembra
o tempo aos poucos me desfigura
o hoje ao ontem não me remete
se tudo no mundo um dia muda,
como reconhecer-me na antiga pele?
o que de mim tanto me difere
talvez seja o que mais me identifica
sou menos do que de mim excede
sou mais o que comigo não coincide
se em outros eus me desconverto,
decerto comigo ainda me encontro
decerto de mim ainda me perco
e mais visível sou onde me escondo
se nestes versos digo e desdigo,
se me visto de verbos e discorro,
agora enfim de todos me dispo
mais existo na hora exata em que morro
ÍNDICE
Esvaziou gavetas e arquivos;
desfez-se de cadernos e agendas.
Deixou apenas um bloco de anotações em branco.
Rasgou lembranças, substituiu a areia
da ampulheta. Verificou a água do filtro.
Doou alguns móveis, criando espaço
para circulação. E nas paredes vazias
só a tinta clara para não distrair a atenção.
Agora o mínimo dentro dos armários,
apenas as obras seletas nas prateleiras das estantes
e a expectativa sobre a superfície da escrivaninha.
Nenhum símbolo, nenhum totem, nenhuma
matéria imprópria.
Tudo no apartamento fluía e desaguava
na correnteza.
Satisfeito, acendeu um incenso.
Os corpos leves para serem habitados
e o espaço branco, amplo, arejado,
à espera do diálogo e da ocupação pela palavra.
Ouça o poema "Índice" na voz do Acadêmico Sergio Fonta
A Academia Carioca de Letras agradece a Marcus Vinicius Quiroga, onde quer que ele esteja, por toda a sua brilhante convivência entre nós.